DE UM ANIMAL PARA OUTRO
Na primavera de 1966, Jacques Rivette filmou uma entrevista entre Jean Renoir e Michel Simon, após o almoço, num pequeno restaurante. Comeram bem e, provavelmente, beberam bem, também.
Sentados lado a lado, participativos e alegres, eles relembram e contam histórias e riem.
A certa altura, Renoir fala sobre Michel Simon e diz-lhe:
“És um animal engraçado de se observar. Eu sei que ao chamar-te animal estou a elogiar-te. Para ti, a criação acontece espontaneamente. Surge inconscientemente, é a única maneira de fazer as coisas.”
Animal! É uma palavra que uso frequentemente para falar daqueles que amo, daqueles que reconheço.
Animal, para mim, como para alguns outros, é um elogio e não uma afronta nem um insulto.
Então, de animal para animal…
Quem sou eu para escrever sobre o trabalho desta mulher?
Não sou crítica de arte, muito menos teórica, faço filmes, ou pelo menos esforço-me para fazê-los.
Então, para contextualizar, vou começar por falar um pouco sobre mim, para, rapidamente, chegar à Lorena Morin.
Antes dos filmes, havia fotografias.
Lembro-me muito bem do nosso ritual, da impaciência que sentia no corpo, quando o meu avô voltava do laboratório com aquelas mangas Kodak amarelas, brancas e vermelhas. Reuníamo-nos na cozinha, ele espalhava as fotos sobre a mesa que tinha uma toalha de plástico, com papoilas.
Lembro-me das gargalhadas, da alegria, dos nossos comentários e das lembranças que bailavam nos nossos pensamentos.
Não me lembro da minha primeira bicicleta, nem mesmo se alguma vez tive uma primeira bicicleta, mas lembro-me da minha primeira câmara fotográfica.
Era uma coisa de criança rica, receber uma câmara aos sete anos, mas nós não éramos ricos.
Para além de eu saber que esse presente do meu avô materno era muito precioso, foi o que ele me proporcionou que o tornou especial.
Foi assim a minha primeira relação com o mundo, o meu primeiro olhar sobre o mundo, construindo-se através da fotografia. Um pouco escondida atrás das lentes e, de repente, menos tímida, mais forte.
Com o passar do tempo, a toalha de mesa com as papoilas foi substituída pela colcha xadrez da cama e a cozinha foi substituída pelo recato do meu quarto invadido de livros de fotógrafos, onde, sozinha, espalhava as minhas fotografias.
Dos insetos às flores, dos olhos de cabras aos olhos de burros, dos líquenes nas rochas às cascas das árvores. E depois, os rostos, as mãos e as bocas das pessoas que me rodeavam. Porque era muito mais fácil aproximar-me delas e fotografá-las do que falar com elas. Eu realmente nunca acreditei demasiado nas palavras dos homens, mas sempre confiei no que os seus corpos e gestos murmuravam.
Fotografar foi, e ainda é, tocar, acariciar, aproximar, aprender, confrontar e criar laços com os outros. Para encontrar o extraordinário no vulgar.
Fazer filmes é a mesma coisa, tempo, movimento e ainda som.
Não conheço muito bem a Lorena, mas existe um elo entre nós, tecido com incrível ternura e respeito mútuo, sem palavras e para além delas.
Talvez seja inerente à ternura e ao respeito, existirem sem palavras e para além delas.
Talvez seja inerente à fotografia, existir sem palavras e para além delas.
Quando a conheci, não sabia que ela era fotógrafa e só descobri o seu trabalho muito mais tarde.
A primeira vez que a vi, ela carregava nos braços uma criança, Freya, com quem formava um corpo bicéfalo.
Sentado neste café em Las Palmas, antes mesmo de conversarmos, tirei-lhes uma foto.
O acaso não existe, disse a minha avó.
Então, por que razão estar a questionar-me?
Por causa dos meus filmes?
Porque sou mulher?
Em nome desta ternura sem palavras?
Sim e não.
Talvez, por todas essas razões, mas principalmente por instinto, tal como ela me escreveu.
E é desse instinto de que quero falar quando me pedem para pensar no trabalho da Lorena.
Dessa relação com o mundo, dessa inteligência tantas vezes desacreditada, com uma pequena dose de condescendência paternalista, que é tão vital para mim e parece ser igualmente essencial para ela.
As sociedades ditas “modernas”, predominantemente masculinas e brancas, sempre opuseram Instinto versusPensamento. Instinto versus Vontade e Controlo.
Que desprezo! Que inépcia!
Acredito que o instinto é consciente, voluntário e, em relação ao controlo, é muito mais generoso. Tem tudo a ver com a forma como se dança com o mundo.
A Victor Hugo que declarou com muito orgulho: “O instinto é a alma de quatro, o pensamento é o espírito de pé” – eu diria que o instinto é a alma de pé com o espírito de quatro. É o pensamento que elabora e encontra uma explicação a dar aos que se esqueceram o que é estar de quatro.
O que mais existe para além do que instinto naquele dedo esticado a apertar o obturador, ali, naquele momento, naquela fração de segundo?
Perdido no meio dos álbuns de fotografias está um dicionário etimológico em vários volumes, então…
INSTINTO:
– Impulso interior e involuntário, que move a alma humana.
– Estimulação interna que determina o ser vivo a ser espontâneo, involuntário ou mesmo forçado; ação com finalidade de preservação ou reprodução; ou, mais precisamente, um modo de atividade do cérebro que leva à execução de um ato sem ter noção da sua finalidade.
“A foto é a caça, é o instinto de caçar sem vontade de matar.
É a caça aos anjos. Rastreia-se, faz-se pontaria, dispara-se e – clique!
Em vez de um homem morto, tornamo-lo eterno.”
Chris Marcador
Valerie Massadian