Coimbra-b

Coimbra-b

Bruno Silva 20210401

NESSA COIMBRA FRAGMENTADA

Ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou (…)
Heráclito.

Diz-se que a vida é uma passagem. Somos, inegavelmente, seres em permanente mutação, pautados por relações ora estabelecidas, ora quebradas, resultado de eternas chegadas e partidas. Num território pequeno como Portugal, onde o trânsito se manifesta grandemente entre Porto e Lisboa, Coimbra encontra-se a meio caminho, fácil e imediatamente imaginada como cidade de contacto transitório, superficial.

Assumamos os dois lados de uma moeda – o lado A e o lado B. Certamente concordaremos que Coimbra nos chega pelo primeiro lado, é assim que a ouvimos contada. O lado nobre onde o A é de academia, da alta, dos arcos. A explosão da vida universitária, do prestígio de ser doutor, das serenatas à chuva no adro da Sé; essa vida que traduz o fulgor de um lume que depressa emerge e depressa se extingue. Todavia, para quem vive a cidade em contexto prolongado ou mais profundo, a entrada é feita pelo outro lado. Os pés pisam a plataforma de coimbra-b, a estação de comboios afastada do centro, que pulsa ao som de uma campainha que só aqui acontece naquele ritmo, vívida melodia. Lembrar-nos-emos bem dela, a mesma, sempre a mesma, a primeira face da cidade que nos recebe e a última a despedir-se de nós. Daí até ao centro vão múltiplas viagens pelo B de baixa, cujo bilhete se circunscreve a quem é despertada a curiosidade de dar um mergulho no desconhecido, ousando abrir-se à imprevisibilidade das ruelas ziguezagueantes a meia luz.

Apercebemo-nos então que nos é vendida apenas uma fração de Coimbra. Coimbra fragmentada. A euforia contagiante dos desfiles e da imponente Universidade é coisa lapidada que serve bem aos livros e às letras. Fantasias dos cartões-postais, das fotografias que registam a visita fugaz do turista. Não é mentira, mas é um livro no qual faltam muitos capítulos. E é esse outro lado que dá caráter a Coimbra. É esse que lhe diz: és linda assim, não sendo Porto, nem Lisboa; algures entre a cidade escura e a iluminada. Não te edificas em metálico enferrujado, nem tampouco és mármore pálida pelo luz do sul. Tu és tu, com o teu encanto próprio, às vezes sombrio, às vezes radiante, perfumada por magnólias em flor, outras tantas por cerveja seca ao sol.

Ninguém mo alertou na primeira vez que entrei na cidade, mas lá, o tempo e o espaço vivem uma relação conflituosa com a normalidade. Podemos passar anos sem voltar, sobreviverão as marcas do passado. Como disse esse alguém que todos nós conhecemos “a cidade está deserta e alguém escreveu o nosso nome em toda a parte”. É esta a melhor manifestação da melancolia, na qual Coimbra materializa a vida
passada. Nesse banco onde me sentei daquela vez enquanto rias à janela ousando saltar ao telhado, atrás do qual a fenda no estuque persiste em forma de trovão. Naquela casa onde jurei que o papel de parede era o mais bonito que já tinha visto, o rasgão aumenta timidamente e ninguém repara. O graffiti ao subir da rua incentiva-nos à mesma revolta. A calçada para quem desce continua escorregadia, melhor agarrar os amigos, ao atravessar. Hoje sei: quer se esteja à distância ou próximo, confirmaremos que o tempo passou apenas por nós.

Deambulamos pela Travessa dos Gatos, pela Rua da Louça, pelo Beco dos Prazeres. Sabes onde ficam? Claro que não, não saberás enquanto não lá andares. Uma coisa te prometo: estarão no mesmo sítio, os cortinados empoeirados, a poltrona atrás da porta, a escadaria sinuosa que nos leva ao cimo. O prazer da descoberta é um impulso viciante, para dele depressa restar a sensação agridoce da perda. Sim, está tudo exactamente como dantes, mas as pessoas vieram e foram. A leviandade da cidade é maior do que todos nós. Por isso o universo se encarregou de cimentar os objetos, que ficam para nos lembrar constantemente de nós, dessas outras tantas vidas. É, a fugacidade dói. Entranha-se pesada e arrepia. Oscilamos assim entre o enamoramento frágil e a dureza triste da realidade. Se há coisa que não se define em Coimbra, que não se suspende no tempo e no espaço, é o sentimento. Só se acumula, cada vez maior, mais nostálgico. É quase insultuoso de expressar. É amor-ódio personificado. Para nos lembrar que a saudade que cravamos no peito desta cidade é também “uma doença, quando nela julgamos ver a nossa cura”.

Coimbra-b não é um trabalho romântico. Não enaltece, nem pretende engrandecer sentimentos mais nobres; antes simboliza essa verdade que nos persegue e persiste. Vivemos aquela cidade em dois tempos e apenas quando afastados entendemos que nela carregávamos a ideia volátil de que voltaríamos, sem nunca nos fixar. Afinal é esta uma cidade como qualquer outra, não feita apenas de encantos. Lugar algum terá jamais o potencial de nos fazer apaixonar facilmente sem sofrimento. Algo que não nos atinge, não toca. Algo que não nos toca, não fica. Ou, não vale a pena.

É assim Coimbra, mas podia ser outro local. A mensagem é universal. A experiência essa, é como de qualquer outro alguém – única. Esta é a do Bruno. Quem se aproxima das imagens, talvez a descubra. Mas, por certo, só quem viveu Coimbra a reconhecerá.

Mafalda Ruão
Porto, Abril 2021.